Neste quase meio século de democracia parlamentar burguesa, e acentuamos a adjectivação pela simples razão de que a sociedade em que viemos é uma sociedade dividida em classes e cujos interesses são diversos e antagónicos, uma das questões que têm assombrado a festa da democracia é a vontade presidencial de dissolução do Parlamento, será a segunda levada a cabo pela mão de Marcelo, com a destituição do governo e realização de novas eleições legislativas. Contudo, o Presidente da República hesita e acobarda-se: “Não faz sentido falar em dissolução” porque reconhece que na oposição não há “alternativa óbvia”. Dissolver ou não dissolver, é a questão que nem Marcelo nem oposição conseguem desenvencilhar.
Um outro ensombramento do governo, mas igualmente para a putativa oposição, é a questão da TAP, com os milhares de milhões ali enfiados e com as peripécias da indemnização de uma gestora e do despedimento pouco cortês da CEO, e de eventual indemnização que lhe poderá ser devida; daí a polémica acrescida do “parecer jurídico” que ao princípio era existente e certo, mas depois da negação feita pelo ministro das Finanças, mais não era que uma questão “puramente semântica”; afinal, será um conjunto de documentos avulso que justificarão o despedimento a frio da empresária francesa.
Para quem esteja menos familiarizado com estes
subtilezas político-semânticas, deve-se esclarecer que, segundo o dicionário da
língua portuguesa: dissolvente é o que ou o que tem a propriedade de
dissolver, ou, em sentido figurado, o que ou aquilo que desorganiza ou
corrompe; isto é, corruptor, desorganizador. Semântico refere-se à
semântica, ao significado das palavras, à interpretação das frases, das
orações. De um lado, teremos o populista e agitador, embora afirme o contrário;
de outro, teremos o que se esconde atrás da semântica para dissimular as
contradições entre ministros que, nesta e em outras questões, mostram que não
passam de meros moços de recados – à semelhança, diga-se de passagem, do
porta-voz de Bruxelas que é o governo Costa/PS.
O partido charneira do 25 de Abril
Neste 49º aniversário do 25 de Abril os encómios
mútuos floresceram mais que os cravos. Costa não se cansou de exaltar as
virtualidades do discurso de Marcelo porque “foi muito pedagógico” e no seu
discurso comemorativo não se coibiu da demagogia mais desbragada, salientando
que "os verdadeiros detentores do poder são os cidadãos", na mesma
linha do PR que não se engasgou ao afirmar que “são os cidadãos que escolhem o
25 de Abril que em cada momento querem prosseguir”. Foi, aliás, como nos têm
habituado, demagogia aos molhos e fazendo o papel da conhecida rábula de Herman
José e Nicolau Breyner, o senhor Feliz e o senhor Contente.
Ao falarmos dos 49 anos de democracia
parlamentar burguesa temos forçosamente de falar dos cinquenta anos do PS, o
partido que se arvora de “charneira” do regime e que durante este tempo todo
foi o instrumento seguro de salvação do capitalismo nacional e da defesa dos
interesses da Alemanha e do grande capital a ela associado. Não é despiciendo
relembrar que o PS foi fundado na Alemanha e com os dinheiros da social democracia
de Willy Brandt, o homem que foi agente da CIA durante mais de uma década e com
pagamento certo ao fim do mês.
O PS, logo que foi poder, trouxe de novo para
o país os patrões que tinham fugido do país, deixando as empresas na falência,
recebendo-as de novo já limpas de passivo. O melhor exemplo foi o BES,
recapitalizado com dinheiros públicos, devolvido a Ricardo Salgado da família
dos Espírito Santo, os banqueiros de Salazar, não tendo gastado um único escudo
do seu bolso, obteve o empréstimo da banca francesa por influência de Soares, e
com o final que todos nós conhecemos. Ricardo Salgado beneficia da liberdade do
25 de Abril de não ser preso, apesar de estar indiciado como o maior gatuno do
país.
A paz social como seguro de vida do PS
O PS manter-se-á no poder, com a sua maioria
absoluta, porque sabe que nem Marcelo nem a oposição, incluindo a mais
trauliteira, desejam outras eleições antecipadas. Quanto à oposição dita de
“esquerda”, essa, devido ao processo rápido e auto-infligido de social-democratização,
reza a todos os santos que as eleições se façam na devida altura, ou seja, só
daqui a três anos, esperando o desgaste inevitável do governo e o simultâneo
afundanço do PS. Este sabe que se conseguir manter a paz social terá sempre a
confiança do patrão alemão e, para tal, está disposto a cumprir com todos os
ditames de Bruxelas. Honrará o papel de brioso lacaio.
Quanto à questão da TAP, o governo PS tem os
sindicatos no bolso, estes sabem perfeitamente quais os projectos para a
companhia aérea nacional, melhor do que o novo CEO, se fizermos fé nas recentes
palavras do dirigente do SITAVA. Depois do presidente não executivo da TAP ter
afirmado que o corte nos trabalhadores “foi até ao osso”, isto é, despedimentos
em barda, cortes salariais até doer, liquidação de serviços essenciais, abate
de aviões, os sindicatos exigem “medidas sérias” ao novo presidente que
“garantam a paz social”. Parece ser esta a condição essencial para que,
finalmente, a empresa seja entregue aos alemães da Lufthansa – o plano imposto
por Bruxelas e que qualquer outro partido da oposição que fosse governo teria
aplicado, sem tugir nem mugir.
Liberdades assimétricas
Costa foi logo acusado de estar a fazer
campanha eleitoral quando anunciou o aumento adicional das pensões e o apoio a
um milhão de famílias, em princípio as mais pobres e que totalizarão uns 3
milhões de pessoas; ou seja, cerca de um terço da população em Portugal é pobre
e se não fossem os apoios sociais esse número seria capaz de duplicar. Esta
terá sido mais uma “conquista de Abril”: liberdade para empobrecer. Assim se
percebe que um CEO das empresas cotadas na bolsa (PSI) ganhe, em média, 36
vezes mais do que um trabalhador; fosso que se agravou na última década,
previsível resultado da política dita “socialista” e de “liberdade” deste e do
anterior governo.
Os factos comprovam que os ricos têm toda a
liberdade de ficarem mais ricos enquanto os pobres ficam mais pobres, a uma
escala que poderá ser superior à existente no tempo do fascismo se tivermos em
conta a desvalorização do dinheiro e as diferenças que haviam entre nós e os
outros países na altura e agora. Voltando ao exemplo dos CEO do PSI:
Remuneração média bruta anual aumentou 47% desde 2012, enquanto o
vencimento médio bruto anual dos trabalhadores recuou 0,7%: Pedro Soares dos
Santos (Jerónimo Martins) recebeu remuneração de 3,7 milhões, 186 vezes
superior à média dos seus trabalhadores; Cláudia Azevedo (Sonae/Continente) uma
remuneração anual que supera em 82 vezes o salário médio dos trabalhadores. E a
lista prossegue, referimo-nos somente à burguesia emergente pós-25 de Abril e
não se contabilizam os lucros das empresas.
A saúde foi outro bem que em determinado
momento melhorou para o povo português com a criação do SNS, no entanto,
depressa entrou em degradação a partir dos governos do PSD/Cavaco Silva.
Primeiro, foi em modo lento e discreto, para passar em modo acelerado quando o
país entrou no euro e com os governos do PS, nomeadamente, com a pandemia que
serviu de pretexto para o encerramento do SNS para dar lugar ao negócio privado
da doença. Mas sempre com a alegação de defesa do dito, ora se não fosse!
Nestes 49 anos de democracia, podemos “orgulhar-nos” de que há cerca de 1
milhão e meio de portugueses sem médico de família e as listas de espera para cirurgias,
consultas ou exames complementares de diagnóstico são infindáveis. Não é por
acaso que Portugal é dos países europeus com menos anos de vida saudáveis.
Degradação económica e falta de confiança no
regime
O tal “principal partido” da oposição vem criticar
o "crescimento medíocre" da economia nacional nos últimos 25 anos,
mas não responsabiliza a entrada no euro como umas das causas pela simples
razão de que é corresponsável. Os miseráveis salários, cuja redução
nominal foi imposta brutalmente pelo seu governo Coelho/Portas, não foram
valorizados depois pelos governos PS/Costa, ambos os partidos são responsáveis.
É o Instituto Sindical Europeu que afirma: “A escassez recorde de mão de obra
na União Europeia (UE) deve-se aos baixos salários e condições de trabalho e
não à falta de competências dos trabalhadores”. Não basta subir o salário
mínimo, como realça a ministra, será necessário subir, e substancialmente, o
rendimento de quem trabalha em geral, mas já houve um aviso: com o aumento das
pensões, a subida da despesa com os salários da Função Pública terá de ser
ponderada.
Não será motivo de admiração que as sondagens
mostrem a descida eleitoral e de popularidade do PS e a subida dos partidos de
direita, incluindo os ultramontanos, à medida que cresce a insatisfação popular
com o estado da democracia (responsável pelo empobrecimento) e com a maioria
das instituições que deveriam garantir o seu funcionamento. E a maior
desconfiança vai não só para o governo como para a dita “justiça”, que é
distante, arbitrária, morosa e cara. O sector da justiça terá sido o único em
que não houve qualquer reestruturação de fundo após o 25 de Abril, os juízes
mantiveram o seu estatuto de privilégio, beneficiando de salários inexplicáveis
e em parte isentos de IRS, e livres do escrutínio do voto. A maior inutilidade
da área da justiça, mas considerada uma importante conquista de Abril, é o
Tribunal Constitucional, que para eleger o seu presidente demorou 17 horas e
com interferência do PS. Tribunal cujas considerações de inconstitucionalidade
das medidas tomadas por Costa durante a pandemia foram por este mandadas às
urtigas.
A liberdade é uma liberdade de classe como já
referimos. Liberdade para o enriquecimento para os detentores do capital e
empobrecimento de quem trabalha. Nem o direito à propriedade da casa é
garantida aos trabalhadores, atendendo ao preço exorbitante e especulativo da
habitação e dos arrendamentos fazendo com que muitos jovens ou fiquem mais
tempo em casa dos pais ou, então, já que não há habitação, nem emprego e nem
garantia de futuro, o melhor é emigrar. O BCE vai subir juros mais três
vezes com pico a chegar em Julho, o que reforça a ideia de que, após 49 anos da
revolução de Abril, a liberdade para emigrar é um direito com futuro. Os apoios
prometidos pelo governo ao arrendamento jovem e ao pagamento das prestações ao
banco dos casais mais vulneráveis servirão mais para manter os rendimentos dos
senhorios e os lucros dos bancos do que propriamente para resolver o problema
da falta de habitação.
Liberdade de expressão e populismos
Nas manifestações que se realizaram no dia 25,
onde foi exaltada a liberdade de expressão e de reunião, um direito que existe
mais para as elites, basta olhar para quem são os proprietários dos media, do
que para os cidadãos de baixo que, por enquanto, possuem apenas as redes
sociais para poderem manifestar-se, e já com algumas limitações devido à
acusação de serem fonte de notícias falsas; mas, quando comparadas com os
media mainstream, fica-se com a certeza que afinal as fake
news vêm precisamente destes últimos.
O que se assiste também é a uma auto-censura
voluntariamente assumida por alguns daqueles que andam por aí de cravo ao
peito: um cartoon de autoria de Onofre Varela foi retirado da Bienal de Gaia
por pressão da Comunidade Israelita de Lisboa por o considerar que “banaliza o
Holocausto cometido pelo regime nazi e diaboliza os judeus na sua relação com a
Palestina”. O cartoonista e a câmara socialista de Gaia ajoelharam e o governo
não interveio, e nas redes sociais também não se notou grande indignação.
O regime apodrece a par do governo. O caricato
incidente com o navio Mondego, a insubordinação dos marinheiros que se
recusaram a sair para o mar nas péssimas condições que mais tarde vieram a
confirmar-se, é bem o símbolo da decadência desta democracia burguesa. A
reacção do almirante das vacinas, misto de arrogância e incompetência, tendo
aproveitado a ocasião para promover uma possível candidatura a Belém, dá
igualmente a imagem dos putativos salvadores da Pátria. Os populismos são
protagonizados mais pelos que descredibilizam o regime do que pelos dirigentes
políticos fascistóide e arruaceiros promovidos pelos media.
Todos fazem parte do establishment, todos são
coniventes e nenhum corporiza alternativa. Esta democracia não chegou sequer à
idade madura, ela saltou directamente para a senilidade precoce, e é por já
estar velha antes do tempo que os populismos vão medrando. O problema do 25 de
Abril foi ter sido, do ponto de vista popular, uma revolução frustrada. Uma Nova
Revolução é necessária, e quanto mais se adiar, mais dolorosos serão os custos
para o lado do Trabalho.
Imagem de destaque: na net
Bartoon no "Público"
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