A transição ecológica multiplica o negócio das grandes empresas de eletricidade
O maior apagão dos últimos anos expôs as
fragilidades do atual sistema energético. Enquanto as instituições promovem uma
"transição verde" impulsionada pelas grandes corporações, os grupos
ambientalistas denunciam a persistência de um modelo de exclusão e concentração
de poder.
Por A. RAMÍREZ
Às 12h32. na
segunda-feira, 28 de abril, a Península Ibérica sofreu a maior falha de energia
desde o início dos registos. Embora as Canárias tenham escapado aos cortes de
energia, os efeitos fizeram-se sentir com interrupções generalizadas nas redes
de telecomunicações, deixando uma grande fatia da população sem comunicação.
Este incidente, que ainda está sob investigação, evidenciou a fragilidade da
infraestrutura que sustenta a vida quotidiana num sistema energético cada vez
mais interligado e, ao mesmo tempo, opaco.
Para além do impacto imediato, o
episódio reabriu o debate sobre o controlo do sistema energético: quem gere a
rede? Quem é o proprietário da infraestrutura? E quem decide como é produzida e
distribuída a energia? Estas são questões que os grupos sociais e ambientais
têm vindo a colocar há algum tempo, e este tipo de incidentes só as tornam mais
urgentes. Porque se a transição energética proposta, que está no centro da
propaganda de inúmeros partidos políticos, continua nas mãos das mesmas empresas
que gerem o modelo dos combustíveis fósseis, de que transição estamos a falar?
A GRANDE MUDANÇA QUE NÃO MUDA NADA
Durante anos, instituições
nacionais e internacionais têm vindo a anunciar alto e bom som a mudança para
um modelo de energia renovável como resposta às alterações climáticas. A
Espanha, e particularmente as Canárias, não foram exceção. Projectos como o
Plano de Transição Energética das Canárias 2030 (PTECan) prometem uma
transformação profunda do sistema energético. No entanto, como denunciaram
grupos como Turcón Ecologistas en Acción, por detrás desta "revolução
verde" existe uma continuidade estrutural que perpetua os mesmos velhos
vícios.
Turcón foi claro: o PTECan é concebido
como um instrumento ao serviço de grandes interesses económicos, com pouco
espaço para a participação dos cidadãos ou para a consideração real das
necessidades energéticas da população das Canárias. Em vez de promover a
descentralização energética e a democratização da produção e do consumo, o
plano favorece projetos de grande dimensão concebidos por e para empresas como
a Endesa, Red Eléctrica, Cepsa e Disa. O resultado? Um modelo em que as fontes
mudam (do petróleo para o sol ou para o vento), mas os proprietários permanecem
os mesmos.
CARACTERÍSTICAS RENOVÁVEIS EM MÃOS PRIVADAS
O problema não é apenas que novos
parques eólicos e centrais fotovoltaicas estejam a ser impulsionados por
multinacionais. Além disso, em muitos casos, são instalados em terrenos
agrícolas ou em espaços naturais, deslocando outros usos sustentáveis do
solo e gerando novas formas de conflito socioambiental. Turcón
denunciou-o repetidamente: os terrenos rurais estão a ser
transformados para megaprojectos sem consultar a população afectada,
enquanto alternativas como o uso de telhados, áreas urbanizadas ou
espaços industriais degradados estão a ser ignoradas.
Mais grave ainda é o paradoxo de que os
cidadãos não só não têm voz neste processo, como são transformados em meros
consumidores cativos de electricidade que continua a ser distribuída sob um
modelo de oligopólio. Portanto, a chamada "transição energética" não
está a servir para capacitar as comunidades ou para avançar para a soberania
energética. Pelo contrário, está a reforçar as estruturas de controlo
empresarial que caracterizam o capitalismo fóssil. Como resumiu um slogan dos
movimentos climáticos europeus: "Não queremos uma transição energética,
queremos uma transição de poder".
A LAVAGEM VERDE DO CAPITALISMO
Numa perspectiva marxista, aquilo que
hoje se apresenta como uma "transformação verde" do modelo económico
não é mais do que uma operação para legitimar o sistema capitalista na sua fase
de crise ecológica. Perante o colapso climático gerado por séculos de
exploração desenfreada da natureza, o capitalismo decidiu não alterar os seus
fundamentos, mas sim "maquilhar-se de verde". É isto que se conhece
como "greenwashing": uma estratégia de marketing político, mediático
e corporativo que disfarça o que é, na verdade, uma reorganização de mercado
como sustentabilidade.
Em vez de questionar a lógica de
acumulação e crescimento permanente que está por detrás da catástrofe
ecológica, o capitalismo procura novas oportunidades de negócio na economia
verde. Assim, as energias renováveis não são
apresentadas como bens comuns, mas sim como nichos de investimento. Os carros
elétricos estão a ser promovidos, mas o modelo de mobilidade urbana não está a ser
repensado. Estão a ser construídas grandes centrais solares, mas não se fala em eficiência energética ou redução de
consumo. Os discursos institucionais sobre o clima estão a multiplicar-se, mas
mantêm-se as mesmas relações de poder entre o centro e a periferia, entre o
capital e o trabalho, entre as empresas e as comunidades.
ILHAS CANÁRIAS: LABORATÓRIO DE UMA
EXPERIÊNCIA FRACASSADA
Neste contexto, as Canárias tornaram-se
um laboratório privilegiado para a experiência do “capitalismo verde”. Devido à
sua localização geográfica, elevada dependência energética e potencial
energético renovável, o arquipélago foi identificado como um "território
ideal" para a transição energética. Mas o que está a ocorrer é uma
colonização do território sob novas formas. Os projectos não surgem de baixo
para cima, mas sim dos escritórios das grandes empresas de electricidade, em
conluio com as administrações que promovem o "interesse geral" para
justificar a pilhagem. O caso do Projeto de Bombagem Reversível
Soria-Chira é emblemático. Apresentada como uma infraestrutura fundamental para
garantir a estabilidade do sistema elétrico, tem sido criticada por diversos
grupos sociais e até por organizações como a Comissão Nacional de Mercados e
Concorrência. Não só pelo seu impacto ambiental, mas também pela sua lógica
centralizadora e privatizadora. Em vez de promover a resiliência energética
através de redes descentralizadas e participativas, o foco está nos
megaprojectos que reforçam o monopólio das grandes empresas.
NACIONALIZAR A ENERGIA ELÉTRICA... E AS
ENERGIAS RENOVÁVEIS: SOBERANIA OU DEPENDÊNCIA
O apagão de 28 de Abril não foi
apenas um aviso técnico, mas uma mensagem política retumbante: a electricidade
e as telecomunicações são pilares da vida moderna, demasiado essenciais para
serem deixados ao mercado. A sua gestão não pode depender das margens de lucro
de algumas multinacionais. Na verdade, o que se tornou evidente é que a
dependência de um sistema privatizado e oligopolístico enfraquece o Estado,
expõe a população e coloca em risco a segurança nacional.
Perante isto, a única solução coerente
é a nacionalização destes setores estratégicos. O sistema
elétrico deve ser transferido para mãos públicas, tanto na geração como na
distribuição. E o mesmo deve aplicar-se às principais telecomunicações, que
estão atualmente concentradas em grandes operadores que não prestam contas à
sociedade. Só um Estado com controlo direto pode garantir investimentos
estruturais, proteger os mais vulneráveis em emergências e
planear a longo prazo.
Mas este processo de
nacionalização deve incluir também as energias renováveis .
Porque se os parques eólicos e as instalações solares se mantiverem nas mãos do
mesmo oligopólio que explorou os combustíveis fósseis, então não há transição:
há apenas uma mudança cosmética. Trocar o petróleo pela luz solar não faz
sentido se o lucro se mantiver concentrado, os territórios se mantiverem
sacrificados e os cidadãos se mantiverem excluídos.
A eletricidade do futuro deve ser
renovável, sim, mas também pública, democrática e ao serviço da maioria .
O contrário — o que está a acontecer agora — é construir uma nova fase do
capitalismo energético, com uma cara verde, mas com os mesmos velhos interesses
privados.
Uma verdadeira transição ecológica só
será possível se o controlo sobre os recursos for democratizado, se forem
construídos modelos de produção colectiva e se forem reconhecidos os direitos
dos cidadãos para decidir como e para que fim a energia será produzida. E isso,
dentro da estrutura do capitalismo, é simplesmente inviável. Por isso, o debate
energético não pode ser dissociado do debate político. Uma verdadeira transição
energética só pode ocorrer num contexto de profunda transformação social e
económica, onde a sustentabilidade não seja um álibi, mas sim um modo de vida.
FONTES UTILIZADAS:
- Cadena SER Canarias – "Canárias evitam apagão, mas sofrem
quebra massiva no serviço telefónico", 29 de abril de 2025.
- La Vinca Ecologistas – “Turcón apresenta queixas ao PTECan”, abril
de 2025.
- Canarias-semanal.org – “Transição energética e capitalismo verde:
o mais recente golpe.”
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