A Europa é chefiada por indigentes e Trump
perdeu-lhes o respeito, se é que alguma vez o teve. Além de despedaçar a
Europa, Trump mostra o seu desprezo pelo projeto europeu que poderia vir a
desafiar o poder norte-americano.
Carlos Branco, Major-General
Há uns tempos escrevi um texto sobre
as vulnerabilidades estratégicas da União Europeia (UE) e como elas condicionam
a sua autonomia. Parece que os dirigentes europeus ainda não as interiorizaram.
Para que a UE possa sobreviver e tenha margem de manobra política, faz sentido
que os seus dirigentes em Bruxelas identifiquem essas vulnerabilidades e o
impacto que possam provocar no seu relacionamento com as grandes potências ou
blocos comerciais.
Em tempos sugeri que, para nosso bem, a União
deveria funcionar como um mediador das
divergências geopolíticas entre os EUA e a Rússia e entre os EUA e a China.
Isso poderá ser agora demasiado tarde. Tal opção permitiria à Europa afirmar-se
como um ator relevante na cena internacional, em vez de se eternizar no papel
de deputy sheriff, esvaziando de sentido as suas pretensões de
autonomia estratégica por que tanto tem pugnado.
A inabilidade diplomática de Bruxelas levou
aos deploráveis espetáculos que começaram em Pequim e se prolongaram na
Escócia. Pequim e Washington não respeitam a União Europeia. Em Pequim, Ursula
von der Leyen, António Costa e Kaja Kallas foram transportados do avião em que
chegaram por um autocarro do aeroporto, como se fossem passageiros de uma
companhia aérea económica. Na Escócia, von der Leyen foi recebida no clube de
golfe de Donald Trump, e teve de esperar que este terminasse o “último buraco”.
O comportamento destes inefáveis dirigentes
recorda-me aqueles que tiveram de recorrer aos fundos europeus e ao alojamento
local para manter a mansão de família, mas que ainda procuram impressionar quem
os ouve recorrendo insistentemente a um passado que já não existe.
A reunião em Pequim, no dia 24 de julho, com o
objetivo de marcar os 50 anos do estabelecimento de relações bilaterais entre a
União e a China, saldou-se por um tremendo fiasco. Os pigmeus foram explicar a
Pequim como se devia comportar com a Rússia. Não perceberam que a sua
vulnerabilidade estratégica não aconselha a falar com voz grossa, e que o atual
estado de coisas é, em grande parte, o resultado dos indigentes terem elevado a
Ucrânia ao estatuto de principal prioridade da política externa da UE: um estado
não-membro tornou-se o principal fator determinante de todas as decisões e
respetivas consequências relativamente aos 27 Estados-membros. A cimeira que
deveria originalmente ter tido lugar em Bruxelas e durar dois dias reduziu-se a
um só, terminando em nada.
Ainda atordoados com o que lhes tinha
acontecido em Pequim, foram confrontados, na Escócia, com a segunda humilhação
em três dias. Esta continuaria quando cederam em toda a linha às imposições de
Trump. Von der Leyen aceitou tudo o que lhe foi imposto. Os EUA estabeleceram
uma tarifa única de importação de 15% para a maioria dos produtos da UE, e de
tarifa de 0% para alguns produtos estratégicos. Neste pacote de 15% incluem-se
os automóveis, o principal motor da indústria alemã e da economia europeia. As
tarifas aduaneiras sobre o aço e o alumínio europeus permaneceram em 50%,
embora esteja em discussão a possibilidade de se avançar para um sistema
baseado em quotas (volume) de exportações, depreende-se.
Simultaneamente, a União comprometeu-se a
investir US$ 600 mil milhões nos EUA, a comprar US$ 750 mil milhões de energia
norte-americana nos próximos três anos e a aumentar as aquisições de
equipamento militar americano. No final von der Leyen descreveu o tratado como
um grande sucesso: “Foi difícil para nós. Mas agora conseguimos”, ficando por
esclarecer o que foi que conseguiu.
Disse sem se rir, que “as compras de produtos
energéticos dos EUA diversificarão as nossas fontes de abastecimento e
contribuirão para a segurança energética da Europa. Substituiremos o gás e o
petróleo russos por compras consideráveis de gás, petróleo e combustíveis
nucleares dos EUA”. O facto de serem significativamente mais caras do que as
russas não a incomoda. Terá aderido à tese do então secretário da energia Rick
Perry quando este afirmou, em 2019, a superioridade do gás natural
norte-americano por ser o gás da liberdade.
Em troca de todas as concessões feitas, a UE
não recebeu qualquer contrapartida. Foi um jogo de soma zero. Recorrendo à
terminologia de Carlo Cipolla, na sua “Teoria Geral da Estupidez”, os EUA
fizeram o papel de “maus” e os dignitários europeus o de “ingénuos”. Segundo
alguns especialistas, a UE sofrerá um prejuízo líquido de cerca de 1,4 triliões
de dólares sem receber garantias ou benefícios. Depois desta “grande vitória”
europeia – conseguiram uma tarifa de 15% em vez dos iniciais 30% -, Trump veio vangloriar-se
deste ser o “maior acordo de sempre”, melhor do que os celebrados com o Japão e
com o Reino Unido.
Os EUA obtêm receitas significativas pela
importação de bens da UE e podem ganhar ainda mais, pois o acordo deixa a porta
aberta para Washington aumentar as tarifas se a Europa não cumprir com as
compras com que se comprometeu. E, como veremos, muito provavelmente assim
será.
A Reuters e a Bloomberg consideram irrealista
a possibilidade de Washington exportar energia para a UE no valor de US$750 mil
milhões. “A promessa da UE importar US$250 mil milhões de dólares de energia
dos EUA [anualmente] é um disparate”, escreve a Reuters. De acordo com os seus
dados, os produtores americanos não serão capazes de satisfazer esse nível de
importação. O valor total das importações de petróleo bruto da União a partir
dos EUA, gás e carvão de coque, em 2024, foi de apenas US$64,55 mil milhões, o
que representa 26% dos prometidos US$250 mil milhões, com que a UE se
comprometeu a gastar anualmente. Isto significa que a UE não os conseguirá
atingir.
Perante tremenda capitulação, as reações
nalguns países da União não se fizeram esperar. “É um dia negro quando uma
aliança de povos livres, unidos para afirmar os seus valores e defender os seus
interesses, se resigna à submissão”, escreveu no X o primeiro-ministro francês
centrista François Bayrou. Na manhã de 28 de julho, Viktor Orbán comentava no
seu podcast que “não foi um acordo que o Presidente Donald Trump fez com Ursula
von der Leyen. Foi o Donald Trump a comer a Ursula von der Leyen ao pequeno-almoço”.
Pelo seu lado, o chanceler alemão Friedrich
Merz afirmou não estar satisfeito com o resultado do acordo e reconheceu que a
economia alemã iria sofrer danos “significativos”, mas de modo condescendente,
afirmou que “simplesmente não era possível fazer mais”. Com a aquisição de
equipamento militar aos EUA, o sonho da reindustrialização alemã à custa da
revitalização da indústria do armamento poderá estar comprometido.
Os problemas começaram a alastrar, com a
agenda verde europeia a entrar em colapso. Segundo o Welt, o Qatar, um dos
principais fornecedores de gás natural liquefeito (GNL) da UE, poderá vir a
suspender as exportações de GNL para a Europa, a menos que o bloco flexibilize
as principais regulamentações climáticas previstas na sua Diretiva da Cadeia de
Abastecimento. O Ministro da Energia do Qatar Saad Sherida Al-Kaabi disse ” que
as empresas [do Qatar] não devem ser forçadas a escolher entre cumprir as políticas
climáticas e as regulamentações da UE”. Parece não serem apenas os chineses a
estar cansados das lições e do “paternalismo” da UE.
Estes desenlaces só vêm provar a justeza
daquilo que dizemos há anos. A Europa é chefiada por indigentes e Trump
perdeu-lhes o respeito, se é que alguma vez o teve. Trump está a conseguir
despedaçar a Europa e a mostrar o seu desprezo pelo projeto europeu que poderia
vir a desafiar o poder norte-americano.
O acontecimento da Escócia foi uma tremenda
vitória político-económica dos EUA e uma clara derrota da UE. Por outras
palavras, um embaraço. Trump está a tentar fazer com o Brasil algo semelhante,
mas sem sucesso. O Brasil tem uma margem de manobra que a Europa não dispõe. O
Brasil tem parceiros, tem opções. A exímia diplomacia europeia conduziu-nos
para um beco sem saída onde não temos aliados. Para onde é que se vai a UE
virar? Seguramente que não será para o sul global. Bruxelas tem medo da sua
própria sombra. Ao não ter ensaiado uma retaliação conjunta com a China aos EUA
cavou a sua própria sepultura. Fraqueza só traz mais exploração.
Depois de impor aos aliados 5% dos orçamentos
nacionais em gastos com a Defesa, na Cimeira da NATO, em Haia, e agora este
“acordo comercial”, ainda há quem continue a achar que Trump é errático,
inconstante, e que não sabe o que quer. Entretanto, campeiam os comentadores
mansos e fofinhos, ou se preferirmos, cobardes, a defenderem a TINA (“There Is
No Alternative”) e a darem cobertura à humilhação. Talvez se deva aplicar aqui
o que rei D. Juan Carlos disse ao presidente venezuelano Hugo Chávez numa cimeira
latino-americana. Parece estarmos condenados ao século da humilhação da Europa.

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