Bagdad sob bombardeio norte-americano em
2003
Os EUA tentaram derrubar pelo menos 80
governos desde 1947 através da instigação de golpes de Estado, assassinatos,
insurreições, agitação civil, manipulação de eleições, sanções econômicas e
guerras abertas
JEFFREY D. SACHS*
À primeira vista, a política externa dos EUA
parece ser totalmente irracional. Os EUA envolvem-se numa guerra desastrosa
atrás da outra – Afeganistão, Iraque, Síria, Líbia, Ucrânia e Gaza. Nos últimos
tempos, os EUA permanecem globalmente isolados em seu apoio às ações genocidas
de Israel contra os palestinos, votando contra uma resolução da Assembleia
Geral da ONU para um cessar-fogo em Gaza, apoiada por 153 países com 89% da
população mundial, e com a oposição apenas dos EUA e de 9 pequenos países com
menos de 1% da população mundial.
Nos últimos 20 anos, todos os grandes
objetivos da política externa dos EUA falharam. Os Talibãs voltaram ao poder
após 20 anos de ocupação americana do Afeganistão. O Iraque pós-Saddam
tornou-se dependente do Irã. O presidente da Síria, Bashar al-Assad, manteve-se
no poder apesar dos esforços da CIA para derrubá-lo. A Líbia caiu numa
prolongada guerra civil depois de uma missão da OTAN liderada pelos EUA ter
derrubado Muammar Kadhafi. A Ucrânia foi esmagada no campo de batalha pela
Rússia em 2023, depois que os EUA sabotaram secretamente um acordo de paz entre
a Rússia e a Ucrânia em 2022.
Apesar destes notáveis e dispendiosos
fracassos, um depois do outro, o mesmo elenco de personagens manteve-se no leme
da política externa dos EUA durante décadas, incluindo Joe Biden, Victoria
Nuland, Jake Sullivan, Chuck Schumer, Mitch McConnell e Hillary Clinton.
O QUE ACONTECE?
O quebra-cabeça é resolvido reconhecendo-se
que a política externa americana não tem nada a ver com os interesses do povo
americano. É sobre os interesses dos atores políticos centrais de Washington,
que procuram contribuições para as campanhas e empregos lucrativos para si
próprios, seus colaboradores e familiares. Em suma, a política externa dos EUA
foi tomada pelo grande capital.
Como resultado, o povo americano está perdendo
muito. As guerras fracassadas desde 2000 custaram-lhe cerca 5 trilhões de
dólares em despesas diretas, ou cerca de 40.000 dólares por família. Nas
próximas décadas, serão gastos outros 2 trilhões de dólares, ou mais, com os
cuidados dos veteranos. Além dos custos diretamente suportados pelos
americanos, devemos reconhecer também os custos terrivelmente elevados
ocorridos no estrangeiro, em milhões de vidas perdidas e trilhões de dólares de
destruição da propriedade e da natureza nas zonas de guerra.
Os custos continuam subindo. As despesas
ligadas ao exército dos EUA em 2024 ascenderão a cerca de 1,5 trilhão de
dólares, ou seja, aproximadamente 12.000 dólares por família, se acrescentarmos
as despesas diretas do Pentágono, os orçamentos da CIA e de outras agências de
inteligência, o orçamento da Administração dos Veteranos, o programa de armas
nucleares do Departamento de Energia, a “ajuda externa” do Departamento de
Estado ligada ao exército (como a de Israel) e outras rubricas orçamentárias
relacionadas com a segurança. Centenas de bilhões de dólares é uma soma de
dinheiro que vai ralo abaixo, desperdiçado em guerras inúteis, bases militares
no estrangeiro e um aumento de armamentos totalmente desnecessário que aproxima
o mundo da Terceira Guerra Mundial.
No entanto, descrever estes custos gigantescos
é também explicar a “racionalidade” distorcida da política externa dos EUA. O
1,5 trilhão de dólares em despesas militares é o esquema que continua rendendo
– para o complexo militar-industrial e para os atores políticos centrais de
Washington – mesmo quando empobrece e põe em perigo a América e o mundo.
Para entender o esquema da política externa,
imagine o atual governo federal como um negócio de várias divisões controlado
pelos que pagam mais. A divisão de Wall Street é gerida pelo Tesouro. A divisão
da Indústria da Saúde é gerida pelo Departamento de Saúde e Serviços Humanos. A
divisão das Grandes Petrolíferas e do Carvão é gerida pelos Departamentos de
Energia e do Interior. E a divisão da Política Externa é gerida pela Casa
Branca, Pentágono e CIA.
Cada divisão utiliza o poder público para
obter ganhos privados através de negócios com informação privilegiada,
lubrificados por contribuições corporativas de campanha e despesas com lobbies.
Curiosamente, a divisão da Indústria da Saúde rivaliza com a divisão da
Política Externa como um notável esquema financeiro. As despesas de saúde dos
Estados Unidos totalizaram espantosos 4,5 trilhões de dólares em 2022, ou seja,
cerca de 36.000 dólares por família, de longe os custos de saúde mais elevados
do mundo, enquanto os Estados Unidos se classificaram em torno do 40º lugar
entre as nações do mundo em termos de esperança de vida. Uma política de saúde
fracassada traduz-se em muito dinheiro para a indústria da saúde, tal como uma
política externa fracassada se traduz em mega-receitas do complexo
militar-industrial.
A divisão de Política Externa é dirigida por
um círculo pequeno, secreto e muito unido, que inclui as altas patentes da Casa
Branca, CIA, Departamento de Estado, Pentágono, Comissões de Serviços Armados
da Câmara e do Senado e das principais empresas militares, incluindo Boeing,
Lockheed Martin, General Dynamics, Northrop Grumman e Raytheon. Há talvez um
milhar de indivíduos-chave envolvidos na definição da política. O interesse
público desempenha um papel reduzido.
Os principais responsáveis pela política
externa gerem as operações de 800 bases militares ultramarinas dos EUA,
centenas de bilhões de dólares de contratos militares e as operações de guerra
para onde o equipamento é enviado. Quanto mais guerras, naturalmente, mais
negócios. A privatização da política externa tem sido enormemente ampliada pela
privatização do próprio negócio da guerra, à medida que cada vez mais funções
militares “essenciais” são entregues aos fabricantes de armas e a empreiteiros
como Haliburton, Booz Allen Hamilton e CACI.
Além das centenas de bilhões de dólares de
contratos militares, há importantes repercussões comerciais das operações
militares e da CIA. Com bases militares em 80 países em todo o mundo e
operações da CIA em muitos mais, os EUA desempenham um papel importante, embora
majoritariamente encoberto, na determinação de quem governa esses países e, por
conseguinte, nas políticas que dão forma a negócios lucrativos envolvendo
minerais, hidrocarbonetos, oleodutos e terras agrícolas e florestais.
Os EUA tentaram derrubar pelo menos 80
governos desde 1947, normalmente sob a liderança da CIA, através da instigação
de golpes de Estado, assassinatos, insurreições, agitação civil, manipulação de
eleições, sanções econômicas e guerras abertas. (Para um estudo soberbo das
operações de mudança de regime dos EUA de 1947 a 1989, ver a obra de Lindsey
O’Rourke Covert Regime Change).
Além dos interesses comerciais, há,
naturalmente, ideólogos que acreditam verdadeiramente no direito da América a
governar o mundo. O caso mais famoso é o da família Kagan sempre belicosa,
embora seus interesses financeiros estejam também profundamente ligados à
indústria da guerra. A questão da ideologia é a seguinte. Os ideólogos erraram
em quase todas as ocasiões e há muito que teriam perdido seus púlpitos em
Washington se não fosse a sua utilidade como belicistas. Conscientemente ou
não, eles servem como atores pagos pelo complexo militar-industrial.
Há um inconveniente persistente neste esquema
de negócios em curso. Em teoria, a política externa é levada a cabo no
interesse do povo americano, embora o oposto seja a verdade. (Uma contradição
semelhante aplica-se, naturalmente, aos cuidados de saúde excessivamente caros,
aos resgates do governo a Wall Street, às regalias da indústria petrolífera e a
outros esquemas). O povo americano raramente apoia as maquinações da política
externa dos EUA quando ocasionalmente ouve a verdade. As guerras da América não
são travadas por exigência popular, mas por decisões vindas de cima. São
necessárias medidas especiais para manter o povo afastado da tomada de
decisões.
A primeira dessas medidas é a propaganda sem
tréguas. George Orwell acertou em cheio em 1984, quando “o Partido” mudou
subitamente o inimigo estrangeiro da Eurásia para a Ásia Oriental sem uma
palavra de explicação. Os EUA fazem essencialmente o mesmo. Quem é o inimigo
mais grave dos EUA? Escolham, de acordo com a estação. Saddam Hussein, talibãs,
Hugo Chávez, Bashar al-Assad, ISIS, Al-Qaeda, Kadhafi, Vladimir Putin, Hamas,
todos desempenharam o papel de “Hitler” na propaganda dos EUA. O porta-voz da
Casa Branca, John Kirby, faz a propaganda com um sorriso no rosto, sinalizando
que ele também sabe que o que está dizendo é ridículo, embora ligeiramente
divertido.
A propaganda é amplificada pelos grupos de
reflexão de Washington que vivem de doações de empreiteiros militares e,
ocasionalmente, de governos estrangeiros que fazem parte das operações
fraudulentas dos EUA. Pensemos no Conselho do Atlântico, no CSIS e, claro, no
sempre popular Instituto para o Estudo da Guerra, levados a você pelos
principais contratantes militares.
A segunda é esconder os custos das operações
de política externa. Nos anos 1960, o governo dos Estados Unidos cometeu o erro
de obrigar o povo americano a suportar os custos do complexo
militar-industrial, convocando jovens para combater no Vietnã e aumentando os
impostos para pagar a guerra. A opinião pública manifestou sua oposição.
“A cumplicidade da América com o Estado
de apartheid de Israel e os crimes de guerra em Gaza não faz sentido
para a segurança nacional e a diplomacia dos EUA, para não falar da decência
humana”
A partir da década de 1970, o governo tem sido
muito mais inteligente. O governo acabou com o recrutamento e transformou o
serviço militar num emprego temporário e não num serviço público, apoiado pelas
despesas do Pentágono para recrutar soldados de estratos econômicos mais
baixos. Abandonou também a ideia pitoresca de que as despesas públicas devem
ser financiadas por impostos e, em vez disso, transferiu o orçamento militar
para as despesas deficitárias, o que o protege da oposição popular que seria desencadeada
se fosse financiado por impostos.
Também tem sugado Estados clientes como a
Ucrânia para combaterem as guerras dos EUA no terreno, de modo a que nenhum
saco com cadáver americano estrague a máquina de propaganda dos EUA.
Desnecessário dizer que os mestres da guerra americanos, como Sullivan,
Blinken, Nuland, Schumer e McConnell, permanecem a milhares de quilômetros de
distância das linhas da frente. A morte está reservada aos ucranianos. O
senador Richard Blumenthal (D-Conn.) defendeu a ajuda militar americana à
Ucrânia como dinheiro bem gasto porque “não há uma única mulher ou homem do
serviço americano ferido ou perdido”, de algum modo não se lembrando o bom
senador de poupar as vidas dos ucranianos, que morreram às centenas de milhares
numa guerra provocada pelos EUA por causa da expansão da OTAN.
Este sistema é sustentado pela subordinação
total do Congresso dos Estados Unidos ao negócio da guerra, para evitar
qualquer questionamento dos orçamentos exagerados do Pentágono e das guerras
instigadas pelo Poder Executivo. A subordinação do Congresso funciona da
seguinte forma. Em primeiro lugar, a supervisão da guerra e da paz pelo
Congresso é em grande parte atribuída às Comissões de Serviços Armados da
Câmara e do Senado, que definem em grande medida a política geral do Congresso
(e o orçamento do Pentágono).
Em segundo lugar, a indústria militar (Boeing,
Raytheon e outras) financia as campanhas dos membros dos Comitês dos Serviços
Armados de ambos os partidos. As indústrias militares também gastam somas
vultosas em lobbies, a fim de proporcionar salários lucrativos aos membros do
Congresso que se aposentam, aos seus colaboradores e às suas famílias, quer
diretamente nas empresas militares, quer nas empresas de lobby de Washington.
A tomada da política externa do Congresso não
é feita apenas pelo complexo militar-industrial dos EUA. O lobby de Israel
dominou há muito tempo a arte de comprar o Congresso. A cumplicidade da América
com o Estado de apartheid de Israel e os crimes de guerra em Gaza não
faz sentido para a segurança nacional e a diplomacia dos EUA, para não falar da
decência humana. São os frutos dos investimentos do lobby israelense, que
atingiram 30 milhões de dólares em contribuições para a campanha em 2022 e que
ultrapassarão amplamente esse valor em 2024.
Quando o Congresso voltar a se reunir, no
final de janeiro, Biden, Kirby, Sullivan, Blinken, Nuland, Schumer, McConnell,
Blumenthal e os de sua laia vão nos dizer que temos absolutamente que financiar
a guerra perdida, cruel e enganosa na Ucrânia e o massacre e a limpeza étnica
em curso em Gaza, para que nós e a Europa e o mundo livre, e talvez o próprio
sistema solar, não sucumbam ao urso russo, aos mulás iranianos e ao Partido
Comunista Chinês. Os promotores dos desastres da política externa não estão sendo
irracionais com este alarmismo. Estão sendo enganadores e extraordinariamente
gananciosos, perseguindo interesses mesquinhos em detrimento dos interesses do
povo americano.
É tarefa urgente do povo americano rever uma
política externa que está tão quebrada, corrompida e enganosa que está
enterrando o governo em dívidas enquanto empurra o mundo para mais perto do
Armagedon nuclear. Esta revisão deve começar em 2024, rejeitando-se qualquer
financiamento adicional para a desastrosa Guerra da Ucrânia e para os crimes de
guerra de Israel em Gaza. A pacificação e a diplomacia, e não as despesas
militares, são o caminho para uma política externa dos EUA de interesse
público.
*Jeffrey D. Sachs é professor de economia
na Universidade de Columbia. Autor, entre outros livros, de A era do
desenvolvimento sustentável (Ed. Actual). [https://amzn.to/3t4aV3s]
Artigo publicado originalmente no portal
CommonDreams / Tradução: Fernando Lima das Neves para A Terra é
Redonda
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