A discussão e aprovação do Orçamento de Estado para 2025 foram quase esquecidas com os acontecimentos de há uma semana, a morte de um trabalhador imigrante, de nacionalidade cabo-verdiana, às mãos de uma patrulha policial que entendeu resolver o conflito a tiro mortal de pistola glock; e foi toda uma semana com os media mainstream e respectivos paineleiros e comentadores a soldo a perorar sobre os eventuais contornos e causas, próximas e últimas, do acontecimento. A tónica centrou-se na criminalização dos tumultos, que sucederam à morte do trabalhador pobre e negro, nas virtualidades de um corpo policial ao serviço das elites e, cereja sobre o bolo, e nas afirmações dos chefes do partido de extrema direita nacional no sentido de que questões deste género devem ser resolvidas, antes, durante a pós de ocorrerem, a tiro. A pobreza, os baixos salários, a falta de habitação e de transportes de qualidade, a marginalização e estigmatização de amplas franjas da população, a falência de empresas e o correspondente desemprego crescentes foram, e continuam a ser, temas para depois. Muito possivelmente para futura e próxima campanha eleitoral, coisa para a qual os partidos do governo apostam cada vez mais.
A paz social e o endurecimento do músculo
policial
Parece que a elite e os seus funcionários
e representantes entraram em pânico com os autocarros e os contentores do lixo
a arderem em bairros periféricos, dos quais os políticos e os
responsáveis camarários se lembram somente em tempos de campanha de mentiras
eleitorais para caçar o precioso voto, mas ocorrências que já são coisas
corriqueiras em países de capitalismo mais desenvolvido e habituado às
consequências que ele próprio produz em termos de empobrecimento dos
trabalhadores e de conflitualidade social.
Montenegro foi obrigado a afirmar que:
"não somos país onde o ódio e questões raciais" sejam
"preocupação". Se afirma isto, é porque a realidade é o seu
contrário. Após de pouco mais de meio ano de promessas e de distribuição de
bodo aos pobres, contando com possíveis eleições legislativas a breve trecho,
lá houve o azar de dois agentes da PSP, ao que parece, ainda maçaricos, terem
estragado a farsa da paz social. O PSD, diga-se de passagem, nunca soube lidar
com este tipo de questões, sempre foi o partido que agarra logo no cacete para
resolver a contenda com os trabalhadores e o povo, ao contrário do PS, este
mais habilitado a usar o ardil e a cenoura.
Não é despiciendo relembrar os dois
ex-ministros da Administração Interna do PSD, Ângelo Correia e Miguel Macedo,
agora comentadores televisivos encartados, o primeiro responsável político pela
morte dos trabalhadores Pedro Vieira e Mário Emílio Gonçalves (1º
de Maio de 1982), o outro pela repressão violenta sobre os manifestantes
durante a Greve
Geral Nacional de 14 de Novembro de 2012. Se o PSD conseguir a maioria
absoluta nas próximas eleições legislativas, antecipadas ou não, depressa
abandonará o discurso da moderação.
Este “incidente” policial vai servir, por
outro lado, de pretexto para a criminalização de qualquer contestação social,
independentemente da justeza ou não das causas do seu eclodir. E fica-se,
atendendo à crueza e objectividade dos factos, com a sensação de que é própria
elite (o governo não passa de um instrumento) está interessada neste processo
de estigmatização e de repressão policial. Não se percebe, aparentemente,
porque razão a câmara de Lisboa permitiu uma segunda manifestação, convocada
pela extrema-direita, para o mesmo dia, mesma hora e confluindo no mesmo local
com a manifestação já marcada por organizações defensoras dos direitos das
população pobres e racializadas, que as câmaras dirigidas pelos partidos do
poder acantonaram em bairros periféricos.
A provocação é o objectivo claro por parte de
um partido, legalizado na base de assinaturas falsas e cujos estatutos ainda
não estarão conforme a lei, que se assume abertamente como instrumento nas mãos
da elite, do governo AD e da câmara de Lisboa, como tropa de choque contra a
classe dos trabalhadores - os jagunços de serviço. O partido de extrema-direita
e as polícias complementam-se, uns provocam, os outros reprimem, daí haver
muitas centenas de polícias militantes do partido. Mas onde é que já vimos estas
cenas? O actual regime que vigora em Portugal parece querer seguir o caminho da
República de Weimar, fossilizar-se em regime autoritário, versão fascismo soft.
Como já referimos em crónica
anterior, uma das intenções deste governo, bem como de alguns homens
de mão que proliferam em outros órgãos do estado, é reforçar o aparelho
policial. Por exemplo, Moedas reitera necessidade de reforçar a polícia em
Lisboa com mais efectivos e dar mais competências à Polícia Municipal, não
contabilizando o número total de agentes em Lisboa, os que passaram da PSP para
a PM, e o número de 8 mil parece-lhe ser insuficiente.
E o ministro da Presidência, após reunião com
os autarcas dos bairros “incendiados” e substituindo-se à inútil ministra da
Administração Interna, não se engasgou ao prometer todos os “meios de
vigilância, desde presencial à cibernética, às redes para serem detetados e
prevenidos todos os comportamentos errados”.
Desta forma, os trabalhadores esperarão mais
controlo e mais repressão em caso de não se portaram bem e as redes sociais,
tão vituperadas pelos media mainstream que temem a concorrência, irão ser
submetidas a vigilância mais apertada e para a qual Bruxelas já aprovou
legislação nesse sentido e que rapidamente será replicada em cada estado
membro. Agora, há que ter muito cuidado com os “comportamentos errados”,
qualificação essa dada pelo próprio interessado Estado/Governo. A nova PIDE
organiza-se.
O empobrecimento do povo e o discurso
autoritário
Não deixa de ser interessante que as coisas
ocorram em tempo de empobrecimento acelerado de grande parte da população
portuguesa, e os números estão aí. “Pobres estão mais pobres em Portugal” é o
título que faz as manchetes nos órgãos de informação de referência, o que levou
o governo a anunciar a criação da Prestação Social Única; ou a “taxa de risco
de pobreza subiu pela primeira vez em sete anos, a intensidade da pobreza
também sofreu o maior aumento desde 2012.
E mais recentemente: a «subida de insolvências
e 'lay-off' são já "uma realidade", alerta presidente da AEP»; ou “as
empresas despediram mais pessoas até Agosto do que em todo o ano de 2023”. A
notícia de que a Volkswagen irá encerrar três fábricas e proceder a vários
milhares de despedimento colocou em alerta máximo os políticos e os media do
establishment na medida em que o mesmo poderá acontecer à AutoEuropa e, então,
será um problema assaz difícil de ser tratado pelo governo AD. Por outro lado,
a Galp teve um aumento de lucros de 24%, para 890 milhões de euros até o mês de
Setembro.
Todos os indícios apontam para que o
desemprego, a contínua degradação dos salários reais (poder de compra) e a
miséria em geral corram em paralelo no ano que vem com o endurecimento do
discurso político dos responsáveis políticos e o intensificar da repressão
policial. Agora foi um cidadão negro e estrangeiro que foi baleado, amanhã
poderá muito provavelmente ser um operário, ou um funcionário público ou outro
trabalhador dos serviços, a ser baleado porque teve um comportamento “errado”.
Contudo, já se assiste a uma arrogância mal
disfarçada por parte de alguns membros do governo, possível sinal de mistura de
arrogância, frustrações pessoais mal resolvidas e autoritarismo. O ministro dos
Negócios Estrangeiros resolveu puxar dos galões de "ministro de
estado" para se arrogar a posição de privilégio no aeroporto militar de
Figo Maduro quando esperava pelos repatriados do Líbano, desrespeitando os
oficiais presentes, o chefe do Estado Maior da Força Aérea e o comandante da
base, recusando o cumprimento e vociferando: "camelos",
"burros" "isto com os militares é sempre a mesma
merda".
Os militares até foram bem educados e com
certeza não deixarão cair os insultos em saco roto, conhecendo os militares
como realmente são. Se o recruta político fosse militar levaria uma pena de
entre 3 meses a 2 anos de prisão, segundo o Código de Justiça Militar. O
chefete do governo veio a público tentar explicar, não dando qualquer
esclarecimento sobre o ocorrido, só depois de passados dezoito dias e porque o
assunto foi tema nas redes sociais. É por estas e por outras semelhantes que os
media detestam as redes sociais, porque ainda não totalmente controladas.
O Orçamento de Estado será aprovado pelo
Bloco Central
Ao mesmo tempo que os instrumentos policiais
são reforçados, o governo pretende fidelizar ainda mais os principais órgãos de
propaganda, dita informação, com o, já apresentado, “Plano de Ação para os
Media”, que inclui 30 medidas para “estimular a Comunicação Social” e o fim da
publicidade na estação pública RTP, o que não apenas "significa perda de
relevância da RTP" mas a sua liquidação, o que já indignou os próprios
trabalhadores e o Sindicato dos Jornalistas, já que prevê redução substancial
dos seus funcionários. Verbas estas que já estão asseguradas no OE-2025 e cuja
viabilização é certa pela abstenção do PS, antecipadamente aprovada por
unanimidade pela Comissão Política daquele partido.
O bloco central dos interesses e dos negócios
está a funcionar em pleno, mas não haveria problema se, por qualquer razão,
deixasse de funcionar, o Orçamento seria aprovado na mesma já que o partido da
extrema-direita se disponibilizara a fazê-lo, apesar do engulho para o mantra
de “não é não” de Montenegro. Mas os “superiores interesses da nação”, leia-se
da elite nacional e Bruxelas, estão acima de tudo e de todos os cidadãos comuns
deste bocado de terra à beira-mar plantado.
Até a ICAR, ainda antes da posição do PS ser
conhecida, pela voz do prior José Ornelas, declarara que quer o Orçamento
porque “o país ganharia muito em ter um (mais propriamente "este")
orçamento” e acredita que “alguns passos" já teriam "sido dados” para
o facto consumado. E os "passos" são a ICAR receber borlas fiscais
como aquela de mais de 6,5 milhões de euros em IRC na realização da Jornada
Mundial da Juventude, passando a Fundação respectiva para o topo das fundações
que mais benefícios receberam em 2023. Não falando do resto.
Convém esclarecer mais uma vez que este
Orçamento de Estado prevê muitos milhões em benesses directas para os amigos,
os clientes e os lóbis mais obscuros, que se habituaram todos os anos a
locupletarem-se com os dinheiros públicos - cerca de 10% (13 mil milhões de
euros) do Orçamento são o saco azul de “Despesas Excepcionais”. No entanto, o
governo deixa que os grandes processos fiquem parados nos tribunais fiscais,
levando à perda de mais de 12 mil milhões de euros de receitas para o estado.
Para que a divisão do saque segundo a lógica
capitalista, a melhor parte para o capital e o restante para o trabalho, que
sempre veio a minguar durante os governos do PS, esteja garantida com a
continuação da exploração dos trabalhadores é conveniente que o cacete esteja
sempre à mão de semear. E se houver eleições legislativas antecipadas com
maioria absoluta para o PSD, e as recentes sondagens visam criar e reforçar
essa tendência, então a receita é certa e sabida. Os tempos que se avizinham
serão de intensa luta de classes.
Imagem: "Populares incendeiam autocarro
no bairro do Zambujal" em Sábado
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