por Rui Viana Pereira
Vários autores têm chamado a atenção para
a responsabilidade das alterações climáticas na vaga
de incêndios que assola a Europa. O principal
factor incendiário seria a subida média das temperaturas e a secura. Este
argumento, sem dúvida válido, suscita no entanto algumas interrogações quando
sabemos que grande parte dos incêndios deflagram (ou são provocados) durante a
noite, quando a temperatura e a humidade são menos favoráveis à sua ignição. No
caso da Península Ibérica, e particularmente no caso português e galego, é
preciso ter em conta a responsabilidade das monoculturas de eucalipto nos
sistemáticos incêndios anuais das últimas sete décadas.
Neste breve apontamento sobre o drama dos
incêndios em 2025, socorremo-nos do exemplo português, por ser paradigmático.
Os perigos da monocultura de eucalipto, sobejamente conhecidos em Portugal,
incluem a devastação de vastas zonas agrícolas e urbanas, a destruição dos
ecossistemas locais e perda de vidas humanas. Tão pesadas consequências
deveriam alertar as populações de todas as outras regiões da Europa para os
perigos da monocultura de eucalipto. Este perigo é ainda mais iminente nas
zonas periféricas da União Europeia: os proprietários empobrecidos são
empurrados para a solução fácil e pouco trabalhosa da monocultura de eucalipto.
À data em que este artigo foi escrito, não nos foi possível apurar a constituição florestal de todas as zonas do continente que estão a arder, com excepção da Galiza, onde o problema da monocultura de eucalipto é semelhante ao português.
Figura 1: Mapa dos incêndios na zona mediterrânica, 17/08/2025. Imagem obtida via satélite (ESA standard license)
Para termos uma ideia do peso da monocultura
de eucalipto e da indústria do papel em Portugal, comecemos por examinar a
composição florestal do país. A floresta ocupa cerca de 36 % do
território, distribuídos principalmente da seguinte forma [1]:
- sobreiro e azinheira: 1.063.000 ha
- eucalipto: 844.000 ha
- pinheiro bravo: 714.000 ha
- pinheiro manso: 193.000 ha
Figura 2: Composição da Área Florestal Segundo o Inventário Florestal Nacional (IFN6) de Portugal
Note-se que desde 2018, data de realização do
inventário acima referido, várias medidas governamentais vieram engordar a área
de eucalipto. De facto, na sequência dos incêndios de 2017 em Pedrógão Grande,
onde morreram em indescritível agonia 64 pessoas cercadas pelas chamas, o então
primeiro-ministro António Costa [2] começou
por prometer, com grande alarido, que iria promover uma reforma florestal e
conter a expansão do eucalipto.
«Temos de ter também uma limitação da expansão
do eucalipto, não porque o eucalipto seja o diabo, mas porque é preciso um
ordenamento que permita uma boa combinação das diferentes espécies florestais.
Temos de ser capazes ainda de impor as barreiras de proteção de habitações ou
de povoações para que exista uma descontinuidade do combustível, tendo em vista
facilitar o combate aos incêndios» – 28/06/2017, site do PS
Poucas semanas depois, a acção das autoridades
desmentiria estas palavras: os licenciamentos para reflorestação com eucalipto
não pararam de aumentar. Foram implantados eucaliptos em zonas protegidas
(algumas delas pertencendo aos parques naturais sob protecção europeia); foram licenciados dezenas de milhares de hectares em zonas onde o eucalipto ainda
não tinha presença significativa, como Odemira. Assim, há quem estime que a
floresta de eucalipto já ocupa em Portugal mais de um milhão de hectares, se
contarmos com as zonas florestais deixadas ao abandono pelos proprietários.
Das 10 maiores empresas de produção de óleo de
eucalipto (um dos subprodutos com maior valor acrescentado), nenhuma delas é
portuguesa. [3] No
entanto, no sector do fabrico de papel e pasta de papel, existem mais de 100
empresas em Portugal. As quatro mais destacadas [4] são
a Renova, a Saika Pack, a Nova DS Smith e a Navigator [5] (esta com lucros de 275 milhões de
euros em 2023; representa cerca de 1 % do PIB nacional e 2,4 % das exportações para 130 países).
É fácil deduzir o poder imenso que estas
empresas possuem nos meios políticos e governamentais. Isto permite explicar o
facto de há mais de meio século todos os governos encomendarem estudos sobre os
fogos florestais, chegando todos os estudos a conclusões semelhantes e acabando
todos eles na gaveta.
Apesar de o país possuir a maior mancha de
eucalipto da Europa, as companhias de papel não estão satisfeitas. António
Redondo, presidente executivo da Navigator, afirmava em 2023: «Para continuarmos a ser sustentáveis precisamos de ter
mais floresta plantada de eucalipto». Ou seja, enquanto Portugal não for um
eucaliptal contínuo de norte a sul, os gestores e accionistas das fábricas de
papel não dormem descansados. E, claro está, se um dia chegarmos a isso,
passarão ao assalto de outras zonas europeias igualmente empobrecidas.
Para seduzirem a opinião pública e fazerem
esquecer os malefícios da monocultura de eucalipto, bem como os tremendos
problemas de poluição causados pelas fábricas de pasta de papel, os seus
gestores acenam com uma diversificação de produtos e muito paleio
pseudoambiental: embalagens feitas em pasta de papel, chapéus, sacos, etc.,
para substituir os plásticos. O que não dizem é que esta «sustentabilidade» é
mortal – feita à custa da vida e da miséria de milhares de pessoas que todos os
anos têm de enfrentar o fogo das florestas de papel.
Note-se que as maiores empresas do sector já
constituíram empresas associadas noutros países, de forma que se coloca outra
pergunta pertinente: que parte dos fabulosos lucros do papel fica no país e é
reinvestida?
A primeira grande vaga de desflorestação:
os Descobrimentos
A primeira grande vaga de desflorestação em
Portugal teve início na chamada época dos Descobrimentos (ou do início da
Globalização, se preferem), quando as madeiras nobres, principalmente o
carvalho e o castanheiro, foram dizimadas para construir as naus enviadas por
esse Mundo fora, a partir dos séculos XV e XVI. O biólogo Jorge Paiva sugere um
número: para construir uma nau seriam necessários três a quatro mil carvalhos;
atendendo a que foram construídas cerca de 2000 naus num século, façam-lhe as
contas e imaginem a brutal desflorestação que ocorreu em Portugal nessa época. [6]
Por outro lado, a razia das florestas ibéricas
não foi compensada com um plano de reflorestação. Serras inteiras ficaram
desarborizadas, como sucedeu em Sintra, nas imediações da capital.
A reflorestação promovida pelo Estado Novo:
prioridade às espécies exóticas e de crescimento rápido
Faltava, portanto, um plano global que
compensasse a desflorestação iniciada no século XV. O Estado Novo (a ditadura
portuguesa que governou durante quase 50 anos do século XX) promoveu a
reflorestação de diversas zonas do país, mas em vez de apostar nas espécies
autóctones de crescimento lento – bastante adequadas ao clima, às temperaturas
elevadas, à época seca, ao pastoreio de diversos tipos de gado e ao fabrico de
diversos subprodutos, incluindo farinhas –, apostou no pinheiro e no eucalipto.
Daí que, a dado momento do século XX, Portugal tivesse a maior mancha contínua
de pinheiro na Europa. Pouco a pouco, porém, o eucalipto ganhou terreno, por
razões económicas que examinaremos sumariamente.
Vantagens económicas do eucalipto
O eucalipto tem uma vantagem económica
evidente: em apenas 9 a 10 anos está pronto para ser cortado e vendido à
indústria do papel. [7] Os
proprietários florestais, muitos deles ausentes do terreno, limitam-se a
prestar-lhe atenção a cada 10 anos, quando mandam alguém cortar os eucaliptos e
recolhem os lucros.
Existe ainda outra vantagem: o eucalipto,
depois de cortado ou ardido, volta a despontar e 9/10 anos depois está pronto
para render mais uma vez. Só à terceira ou quarta geração tem de ser
desenraizado e replantado. Existe portanto um ciclo curto (9 a 10 anos) e um
ciclo longo (30 a 40 anos), após o qual o processo de investimento florestal
tem de ser reiniciado.
Poucos proprietários terão deitado contas aos
ganhos e prejuízos a longo prazo. Alguns começam agora a perceber que,
descontando os custos de corte, desenraizamento e replantação, a longo prazo
pouco ou nada ganham.
As desvantagens ecológicas do eucalipto no
clima ibérico
O eucalipto é uma planta pirófila: não só
resiste bem ao fogo, após o qual volta a renascer, como depende dele para
perpetuar o seu ciclo de vida e eliminar a concorrência de outras plantas no
terreno. É uma espécie adaptada às condições climatéricas e aos terrenos da
Austrália e da Tasmânia, onde domina. No seu ambiente natural consegue
sobreviver em terrenos pobres de nutrientes e água. Transplantado para terrenos
mais ricos, absorve avidamente todos os nutrientes e toda a água, crescendo a
grande velocidade (por comparação com as árvores autóctones) e matando à fome a
maioria das outras espécies.
A partir dos 6/7 anos de idade, o eucalipto
torna-se altamente inflamável. O bem conhecido aroma que exala é composto por
terpenos, ácidos fenólicos, óleos e outros compostos inflamáveis, não
digeríveis e inibidores do desenvolvimento das sementes de outras espécies. Daí
que seja conhecido como o «deserto verde», visto que mata praticamente tudo à
sua volta, devastando os ecossistemas que aí viviam.
Além de inibir o crescimento de outras
espécies, o eucalipto não serve de alimento a coisa nenhuma. O único animal
capaz de digerir as folhas do eucalipto não sobrevive no clima europeu: o
koala. Daí que o papel de vários animais na limpeza «natural» das matas e
florestas, com destaque para as cabras nas regiões montanhosas, tenha
desaparecido do mapa florestal. [8] Assim,
o solo onde assenta o eucaliptal é um rastilho pronto a arder e quanto a isso
nada há a fazer, nenhuma manutenção florestal resiste contra o eucalipto.
Por outro lado, os terrenos ocupados pelo
eucalipto não carecem de intervenção humana e portanto são votados ao abandono,
até ao dia em que ardem. Além disso, quando os proprietários plantam eucalipto
em terrenos sem boas condições para um crescimento rápido (e de qualquer forma,
ao fim de 40 anos, os terrenos tendem a ficar exaustos e improdutivos e os
eucaliptos deixam de renascer), percebem que dali não conseguem extrair lucro e deixam as suas florestas ao abandono, com redobrados perigos de
incêndio.
Como se isto não bastasse, a casca e as folhas
da árvore adulta são autênticas bombas incendiárias teleguiadas, uma espécie de
drones de guerra capazes de planarem e transportarem as chamas a centenas de
metros de distância (mais até, se o vento ajudar), criando diversas frentes de
fogo e por vezes cercando e matando os bombeiros e as populações.
Finalmente sucede uma coisa perversa: um
eucaliptal ardido continua a poder ser vendido para fabrico de pasta de papel,
só que … por mais baixo preço. Desse ponto de vista, os incêndios florestais
são um maná para a indústria de papel.
Lucros privados, prejuízos colectivos
A lógica capitalista, eminentemente lucrativa
e individualista, impede que os proprietários florestais e a indústria do papel
arquem com os custos colectivos dos incêndios: as mortes, a destruição de lares
e de equipamentos agrícolas, os custos do combate ao fogo, a dizimação do gado,
etc.
Enquanto não forem criados mecanismos que
obriguem os proprietários florestais e as papeleiras a pagarem solidariamente
os custos dos incêndios e indemnizarem as suas vítimas, podemos ter a certeza
de que os incêndios continuarão a devastar a Península Ibérica e a zona
mediterrânica em geral.
Portugal tem a maior mancha de eucalipto,
tanto em termos absolutos como relativos
Por estranho que possa parecer, um pequeno
país como Portugal (menos de um quinto da área de Espanha) possui a maior
mancha florestal de eucalipto da Europa, em termos absolutos. Estima-se que a
área total de eucalipto no país ronde o milhão de hectares, incluindo as áreas
improdutivas e abandonadas.
Ao nível mundial e em termos relativos,
Portugal é o maior produtor de eucalipto, com apenas três países a produzirem
mais eucalipto em termos absolutos (dados de 1999 [9], portanto muito
desactualizados):
- Brasil (92 vezes a área de Portugal) – 3 milhões ha de eucalipto
- Índia (32 vezes a área de Portugal) – 1 milhão ha
- China (104 vezes a área de Portugal) – 600.000 ha
- Portugal – 550.000 ha
Conclusão
Embora as alterações climáticas tenham efeitos
dramáticos na fauna, na flora, nas actividades humanas e na saúde do planeta em
geral, não são as únicas responsáveis pelas vagas de incêndios. Aliás, em
Portugal há já muitas décadas que todos os anos ardem florestas inteiras, por
vezes provocando mortos e feridos, sempre com elevados custos colectivos. É
entre os culpados do costume – a ganância capitalista – que vamos encontrar o
convite ao incêndio. Aliás, se partirmos do princípio que a subida média das temperaturas
é a principal causadora de incêndios, como justificar o facto de pelo menos
metade dos incêndios florestais (segundo os media) terem início a
coberto da noite, quando as temperaturas caem significativamente e a humidade
aumenta?
A indústria do papel, além de outros
subprodutos do eucalipto, constitui sem dúvida um dos grupos de pressão mais
poderosos, ainda que relativamente discreto. Daí que todos os estudos sérios (e
são muitos, ao longo de várias décadas!) apontem diversas soluções, a começar
pela contenção ou mesmo extinção da área de eucalipto, mas nenhuma delas tenha
jamais sido aplicada.
Fica o aviso aos restantes países europeus, em especial aos periféricos: a monocultura de eucalipto mata – mata bombeiros, populações e ecossistemas inteiros.
Notas
[1] 6º
Inventário Florestal Nacional, 2019, https://www.icnf.pt/noticias/inventarioflorestalnacional.
[2] António Costa, do Partido Socialista, foi primeiro-ministro desde 26/11/2015 até
7/11/2023. Antes disso, entre 1995 e 2015, foi ministro de diversas pastas e
presidente da Câmara de Lisboa. Desde 2024 é presidente do Conselho Europeu.
[3] «Top 10 Companies in
the Europe Eucalyptus Oil Industry (2025)»,
3/07/2015, Chemical Research Insight.
[4] Consulte-se
o ranking das empresas do sector em https://apigraf.pt/2022/07/24/rankings-apigraf-2022/.
[5] http://www.thenavigatorcompany.com/.
[6] Citado
a partir de Jacinto Silva Duro, «Portugal é o país
com maior área de eucalipto», 17/07/2017, Jornal de Leiria.
[7] Compare-se
com o carvalho: precisa de cerca de 10 anos para alcançar os 3 metros de
altura; ao fim de 20 a 50 anos, atinge a idade adulta, isto é, o crescimento
pleno. Algumas espécies têm um crescimento ainda mais lento.
[8] Segundo
o testemunho de um familiar, só numa minúscula aldeia da Lousã havia nos anos
1940 cerca de 2000 cabras. Eram elas, juntamente com as actividades humanas,
que mantinham as florestas «limpas», isto é, com pouca matéria combustível
capaz de alimentar fogos. Não há memória de que a serra fosse periodicamente
assolada por incêndios. Actualmente a encosta ocidental da Lousã é uma mancha
contínua de eucalipto e todos os anos arde.
[9] https://www.researchgate.net/figure/Area-coverage-of-eucalypt-plantations-in-different-countries_tbl1_284907376



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