Frantz Fanon, psiquiatra e intelectual
martinicano, completaria 100 anos no próximo dia 20 de julho. Décadas após suas
principais obras, questões colocadas pelo pensador seguem reverberando. À
Sputnik, estudiosos contextualizam e falam do legado do autor.
A vida de Frantz Fanon tem a revolução em seu
seio. Nascido em Fort-de-France, colônia francesa da Martinica, Fanon
lutou junto do Exército francês durante a Segunda Guerra Mundial, anos
antes de se formar em psiquiatria em Lyon.
No contexto de sua formação, o autor vai
escrever o que seria seu trabalho de conclusão de curso, que não foi aceito
pela universidade. Mais tarde, o texto descartado seria publicado como livro e
se tornaria um dos principais trabalhos do autor: a obra "Peles Negras,
Máscaras Brancas".
Mais tarde, Fanon, instigado pelas injustiças
coloniais, vai clinicar na Argélia e tem atuação, desta vez não no campo de batalha, em outro conflito, a Guerra da
Argélia. Em Argel ele atua como psiquiatra e também escreve para a mídia da
época. Os escritos e aquela vivência, posteriormente, desaguam em outra obra
marcante, Os Condenados da Terra.
A luta anticolonial guiou o pensamento do
autor, que, enquanto humanista, acreditava que a superação do racismo colonial
era a chave para um mundo sem desigualdades e sem o imperativo do
capital. Quase 100 anos após seu nascimento, a sociedade está longe do
que o autor propunha e, também por isso, suas questões reverberam em
tempos hodiernos.
"Fanon é uma das bases para a gente
começar os estudos sobre a questão racial",
descreve Leonardo Beliene, professor da rede estadual de educação
do Rio de Janeiro, mestre em educação popular pela Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro (UFRRJ) e especialista em África e cultura afro-brasileira
pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ).
Na mesma linha, Davi Carlos Acácio,
jornalista e mestre em comunicação social pela Universidade Federal de Juiz de
Fora (UFJF), coloca o intelectual martinicano.
"É um autor que eu colocaria entre os
principais desse pensamento da questão, tanto da questão colonial, quanto da
questão de um pensamento para a conscientização ou para a desalienação do
negro, como ele mesmo coloca no 'Pele Negras, Máscaras Brancas'".
Para discutir o racismo colonial, o pensador
fala que é "o branco quem cria o negro", ou seja, "o
problema do racismo é uma questão do branco", afirma Acácio.
É nesse jogo entre "ser o outro de
alguém", no caso das pessoas negras, que Fanon vai entender as relações raciais, conforme Acácio. Nesse sentido, a partir
dessa alteridade, a humanização será sinônimo do "ser branco",
enquanto ao negro "ficam os estereótipos do que está fora do
sentido de humanidade", acrescenta.
A "máscara branca", que dá título à
uma das obras de Fanon, está estabelecida nesse limiar, na "própria
condição que o negro vai ter para tentar se associar ou assumir, de certa
forma, determinados elementos simbólicos, como a linguagem, por exemplo, em
busca de humanização", afirma o jornalista.
Como o racismo não é tido como "problemas
dos brancos", o complexo de inferioridade ronda as pessoas negras em suas
relações sociais, segundo o analista. "Tanto que muitos negros
acreditam no seu fracasso como uma legitimidade pretensa de uma pele que o
enclausura", completa.
O pensamento fanoniano, nessa vertente,
trabalha para questionar esse pretenso sentimento de pequenez social e tirar a
população negra dessa jaula, que a limita. O corpo negro deve, portanto,
segundo salienta Fanon, "fazer de mim um homem que questiona",
salienta Acácio.
Fanon nos dias de hoje e no Brasil
Professor, Beliene ressalta que as questões
colocadas por Fanon ainda são muito atuais. Embora trate-se de uma leitura
densa para adolescentes estudantes dos ensinos fundamental e médio, o
pesquisador afirma que usa indiretamente o intelectual para conversar sobre o racismo,
que é fator estruturante da nossa sociedade.
Entretanto, ele aponta que lida com uma
juventude mais consciente sobre a questão racial hoje do que quando era jovem,
entre os 1990 e começo dos anos 2000.
Ele aponta, também, que o legado do pensamento
fanoniano está na esteira dos avanços da população negra no Brasil, mesmo que o
racismo não tenha sido propriamente rompido.
"A gente consegue ter um grande avanço e
é legal ressaltar, assim, o movimento negro brasileiro. Ele é um movimento
muito antigo, mas o boom mesmo, pelo menos pra mim, nas coisas que eu vivi, é a
questão dos anos 2000, [...] quando a gente vai falar das medidas
afirmativas", conta.
Além disso, Beliene destaca a pulverização do
conhecimento através dos meios digitais, junto à formação de profissionais
engajados a partir da entrada de mais pessoas negras na universidade.
"A gente não consegue romper com a
estrutura, mas a gente consegue criar um desconforto", destaca.
Acácio aponta, também, o papel de
conscientização pregado por Fanon, que vai ressaltar o papel da educação
durante sua trajetória.
"Ele aposta nesse caminho do estudo, de
adquirir sabedoria, como um caminho possível, pelo menos para brigar
por esse significante. Veja bem, a gente está falando de um significante,
no caso o negro, que já está ali imbuído de sentido, através de um outro que
vai criá-lo, que seria o branco, como eu já falei, o branco é quem cria o
negro. A partir disso, quando se dá outros sentidos para esse significante, ele
é deslocado desse lugar somente de uma coisa ruim, embora a gente saiba que
essa interpelação também pode se ater a traumas", explica o jornalista.
O trabalho de Fanon também está presente nos
dias de hoje, segundo Acácio, quando pensamos movimentos sociais, muitas vezes
realizados de forma costumeira, natural.
O intelectual salienta a subjetivação como
fundamental para o entendimento da psiquê. Entretanto, no caso das pessoas
negras, o autor destaca que a racialização tem papel na construção de
sentido e nas relações daquele indivíduo.
"Existem traumas que vão atravessar as
pessoas negras de uma certa forma que vão condicioná-las aos seus
movimentos sociais, à sua própria forma de linguagem", explica. Nesse
caso, ele cita o fato de pessoas negras sempre andarem com documento de
identificação, se preocuparem, talvez mais que o necessário, com a roupa que
sairá de casa. Todas essas decisões cotidianas, muitas vezes pensadas em como
atenuar a possibilidade de ser vítima de uma violência racista.
Entender, portanto, o processo de racialização
e o impacto disso na subjetividade de indivíduos negros é algo que Fanon
destacava há décadas e ainda se faz presente hoje, sobretudo porque, como
destaca Acácio, "o racismo colonial é um sistema que funciona
muito bem até hoje".
Sputnik

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