Pedro Almeida Vieira
O apagão de 28 de Abril não foi um incidente
imprevisto. Foi a manifestação física de uma política energética leviana, de
uma estratégia de privatizações cegas e da rendição sistemática do Estado
português aos interesses financeiros internacionais.
Portugal entregou, voluntariamente, uma das
suas infraestruturas mais críticas — a gestão da rede eléctrica nacional — a
entidades cujo único objectivo é maximizar lucros. A REN, concessionária da
rede de transporte de electricidade, foi separada da produção no ano 2000 para
cumpri um objectivo da União Europeia de liberalização do mercado energético
com a separação jurídica de empresas para não existirem conflitos de interesses
e haver maior transparência e competividade.
De boas intenções estáo inferino chei. E em
pouco anos, um sector vital para a Economia portuguesa não só sai do controlo
do Estado português como de empresas nacionais. Hoje, a REN é detida em 25%
pela State Grid do Governo da China, em 12% pela Pontegadea Inversiones do
espanhol Amancio Ortega, em 7,7% pelo fundo norte-americano Lazard Asset
Management, em 5,3% pela Fidelidade (também de capitais chineses), e em 5% pela
Red Eléctrica de Espanha (Redeia). O resto dispersa-se entre fundos privados.
Em termos de investidores institucionais somente 11% do capital está em mãos
portuguesas, embora com parcelas disperas. E o Estado português? Um espectador
impotente.
Esta situação, criada e consolidada sobretudo
sob o Governo de Pedro Passos Coelho, não apenas retirou capacidade soberana de
decisão sobre o funcionamento da rede nacional — expôs o país a uma
vulnerabilidade estrutural que ontem explodiu em toda a sua crueza.
No final da manhã de ontem, Portugal operava
com cerca de 30% da sua carga eléctrica abastecida através de importações de
Espanha. Esta dependência diária, quase invisível para a maioria da população,
é a herança directa do encerramento das centrais térmicas nacionais — primeiro
as de carvão, depois o progressivo esvaziamento da capacidade de resposta das
centrais a gás — em nome de uma “transição energética” feita sem cautela, sem
reservas e sem responsabilidade.
Mas a irresponsabilidade não parou aí. Aquilo
que ontem aconteceu foi ainda mais grave, porque demonstra que a REN procura
maximizar o lucro em detrimento da segurança, no sentido do fornecimento de
electricidade sem riscos de apagão. Ontem, independentemente da causa, aquilo
que poderia ser um mero incidente descambou num colapso de todo o sistena
eléctrico nacional.
Com efeito, ao amanhecer, num dia de
previs+ivel forte incidência solar, as centrais hidroeléctricas nacionais — um
dos poucos activos capazes de garantir flexibilidade e estabilidade ao sistema,
agora cheias com as chuvas dos últimos meses — foram deliberadamente
desligadas. Porquê? Para maximizar a importação de electricidade de Espanha a
preços mais baixos e, em boa parte, canalizar essa electricidade para processos
de armazenamento, como a bombagem hidroeléctrica.
Mas o sistema eléctrico, importa sublinhar,
não distingue consumo final de armazenamento. Para a rede, tudo é carga. Tudo
consome energia em tempo real. Quando o somatório da procura — doméstica,
industrial e de armazenamento — ultrapassa a geração disponível, a rede
desestabiliza: a frequência baixa perigosamente e, sem resposta rápida,
desencadeia-se o apagão geral. Foi exactamente isso que sucedeu.
Portugal passou a operar o seu sistema
eléctrico no fio da navalha: altamente dependente de importações, com a
produção interna dominada por renováveis intermitentes (solar e eólica) e sem
uma capacidade de resposta interna suficiente para lidar com falhas externas.
Um modelo que qualquer manual de engenharia de sistemas eléctricos
classificaria como imprudente — e que ontem demonstrou, sem misericórdia, a sua
falência.
Pior ainda: tratou-se de uma falência por
opção consciente. Um Estado que não controla a sua infraestrutura energética;
uma operadora que gere o sistema com critérios de maximização de margens
financeiras; uma política energética que sacrificou a segurança pela cosmética
da “transição verde” a qualquer custo.
Ontem, não faltou apenas electricidade. Faltou
soberania. Faltou competência. Faltou prudência. Faltou Estado.
No sector energético há três S
fundamentais que estão a falhar: segurança, soberania e sustentabilidade.
A Segurança energética exige a existência de uma capacidade
firme de produção nacional, uma gestão prudente e responsável das redes
eléctricas, bem como a manutenção de reservas de contingência prontas a ser
activadas em caso de necessidade.
A Soberania implica que um
país preserve o controlo efectivo sobre os seus activos estratégicos, recusando
a sua entrega a capitais estrangeiros cuja lógica é movida apenas pelo lucro e
não pelo interesse nacional.
Já a Sustentabilidade, se for
verdadeira e madura, exige uma transição energética realizada com inteligência
e prudência, respeitando o equilíbrio técnico do sistema e não sacrificando, em
nome de modas políticas, as bases que garantem a sua estabilidade e
resiliência.
E a responsabilidade não é apenas da REN nem
dos operadores privados, porque esses visam o lucro legítimo. Ela recai
directamente sobre os decisores políticos que, com leviandade e voluntarismo,
abdicaram de proteger o interesse nacional em nome de interesses económicos de
curto prazo.
Se nada for feito — se o Estado não recuperar
instrumentos de controlo, se não se reconstruir uma capacidade de reserva
energética interna robusta e independente —, o apagão de 28 de Abril não será
recordado como um acidente isolado, mas como o prelúdio de colapsos futuros.
Não é uma questão de “se”. É já apenas uma questão de “quando”.
A energia de um país não é um bem comum
qualquer. É o sangue que corre nas suas veias económicas e sociais. Entregá-la
a lógicas puramente financeiras, sem responsabilidade, sem estratégia e sem
soberania, é um acto de autodestruição.
O Estado desertou. Os apagões, agora, são
apenas a consequência natural.
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