“War” – Paula Rego, 2003
Durante algum tempo as reivindicações dos
professores fizeram as manchetes dos principais órgãos de comunicação social
(ocs), com o empastelamento das conversações e das promessas sempre adiadas por
parte do governo, depressa passaram a segundo plano dando lugar a outras contestações
e problemas prementes mais sentidos pela sociedade, o preço dos alimentos, a
especulação na habitação e a novela da transportadora aérea nacional, a TAP.
O cabaz da fome
Perante a inflação incontornável e
insuportável dos preços dos alimentos básicos, sentidos mais fortemente pelo
povo mais pobre mas igualmente pela classe média empobrecida e proletarizada, o
governo sentiu necessidade de tomar algumas medidas; no entanto, recusando as
mais evidentes e necessárias, a fixação dos preços e aumento do poder de compra
do cidadão, optou pelo fim do IVA num cabaz de pouco mais de 40 produtos,
considerados os mais básicos e procurados, na base de uma “acordo de
cavalheiros” com os principais grupos de distribuição merceeira. Coloca-se em
causa a eficácia da medida, será mais um cabaz de fome e mais outra maneira de
fazer aumentar os lucros das famílias Azevedo e Soares dos Santos.
O governo do partido autodenominado
“socialista” e chefiado por Costa tem-se limitado nesta história de “combate à
inflação” a respeitar as directivas do BCE (Banco Central Europeu) e do FMI
(Fundo Monetário Internacional), dar algum dinheiro aos cidadãos mais pobres
para teoricamente manter o seu poder de compra. O resultado é fácil de antever,
por um lado, a fonte dos dinheiros públicos não é ilimitada que, por sua vez,
vem dos impostos, pagos na sua maioria pelos trabalhadores; pelo outro, as
empresas que vendem podem manter os preços porque a procura não diminui. No
final, a inflação mantem-se, a dívida pública aumenta, o povo continua pobre e
os grandes capitalistas, alguns deles já aqui referidos, ficam mais ricos.
O grave problema da habitação
Esta política replica-se por todos os domínios
da economia nacional (capitalista, será bom relembrar!) e, então, na habitação
é o que se poderá chamar “é fartar vilanagem!”. O estado, diga-se, o governo,
dá dinheiro a casais jovens para poderem aguentar rendas altíssimas, como a
procura se mantem ou eventualmente poderá subir graças à ajuda do governo, os
senhorios poderão continuar a especular com os arrendamentos. A situação
estende-se agora por formas algo semelhantes e até mais gravosas para o erário
público perante o agravamento deste problema nas grandes cidades: “o governo
espera conseguir subarrendar mil casas de privados até 2026”. É o maná para os
especuladores da área.
Mas mais: a ministra da tutela já sublinhou
que o “arrendamento forçado não é o instrumento que os municípios vão
utilizar”. Não se saberá ao certo qual será o instrumento privilegiado dos
municípios, muito possivelmente será deixar tudo na mesma. Porque é bom que os
estrangeiros continuem a especular – “Estrangeiros gastaram 895 milhões de
euros na compra de casas em Lisboa em 2022” – ou que os preços das casas em
Portugal tenham subido 11% no último trimestre de 2022 enquanto subiram apenas
2,9% na Zona Euro, ou que as rendas de novos contratos tenham acelerado no
final de 2022 para 10,6%. Ganham os especuladores, ganham os escritórios de
advogados, ganham as imobiliárias, ganham as autarquias e mais quem se abotoa
com chorudas comissões. Perde o povo que mal tem dinheiro para comer.
As medidas eficazes para fazer frente a esta
questão são essencialmente duas e fáceis de aplicar caso o governo fosse
socialista de facto: promover a habitação do estado, começando pela
reabilitação dos edifícios públicos abandonados e colocando-os de imediato no
mercado a preços limitados, e construção de novos, pelo apoio à habitação
cooperativa. Segunda medida, apropriação administrativa de todos os edifícios
privados abandonados e/ou degradados, reabilitando-os, e receber as rendas como
ressarcimento do investimento. E possivelmente uma terceira medida:
eventualmente expropriar em casos de aberta especulação e proibição de compra
de edifícios para habitação a estrangeiros e a fundos de investimento, coisa já
feita em outros países da União Europeia.
Claro que haverá outras medidas e bem simples
e rápidas para resolver o problema da habitação, mas tal só poderia acontecer
se houvesses um governo revolucionário e em situação de profunda convulsão
social, que é a situação para onde estamos a caminhar mais depressa do que
pensamos e empurrados pela crise e degradação imposta pelo capitalismo, como,
aliás, aconteceu logo após o 25 de Abril: o povo ocupa as casas. Toda a família
que não tem casa ocupa o que está abandonado e desocupado sem direto a
indemnização aos antigos proprietários rentistas e especuladores, e
especialmente estrangeiros.
O PS é socialismo para os ricos e pobreza
para povo e classe média
O governo, seja PS ou PSD ou qualquer outro,
obedece a Bruxelas e segue as regras impostas via BCE, e, assim, deve-se estar
mais atento ao que diz Centeno do que propriamente Costa. E Centeno não deixa
margem para dúvidas e continua a insistir na “receita da contenção
salarial em nome do controlo da inflação”, que traduzido por miúdos, como
costuma dizer-se, é conter os salários para aumento dos lucros, começando e
acabando nos bancos – nunca esquecer que Portugal não tem soberania monetária e
a moeda que circula entre nós é aquela que o BCE nos disponibiliza. Quando foi
a crise grega e no governo do Syriza / Tsipras o BCE chantageou, deixando os
bancos gregos sem dinheiro e as caixas do multibanco vazias, como não havia
alternativa planeada para criação de nova moeda, a Grécia ajoelhou.
O governo de Costa e PS não deixa ambiguidade,
ao contrário do que aconteceu com o Syriza, e tem-se revelado umas mãos largas
para o grande capital, cedendo em toda a linha: Soares dos Santos diz que IVA
zero é possível "desde que Governo se torne honesto". E o governo
tornou-se “honesto” mas com os grandes empresários que nem sequer pagam os
impostos em Portugal. No entanto, Pedro Soares dos Santos, presidente do
Conselho de Administração da Jerónimo Martins (Pingo Doce), recebeu 18,6
milhões de euros em três anos; e presidente executiva da Sonae manteve
remuneração bruta de 1,6 milhões de euros no ano passado – vem nos ocs
mainstream. Em contrapartida, o custo da hora de trabalho em Portugal foi de 16
euros, metade da média europeia. Resumindo, o porco para o capital, o chouriço
para o trabalho, e se e quando o capital bem entender. Se isto não é o
neoliberalismo mais nauseabundo, então teremos de acreditar que a terra é
plana.
Parece que o estado não tem meios para
fiscalizar os preços, fazendo lembrar outras políticas, nomeadamente a da
saúde, onde o estado possui os meios mas paga aos privados pelo trabalho que a
si caberia: Governo paga 230 mil euros a empresas privadas para fiscalizar os
preços dos alimentos. Mais tarde ficou-se a saber que não seria bem para
fiscalizar, mas mais para seguir a evolução dos preços. Um bocado como a
aviação, o estado tem força aérea, tem pilotos, tem logística, mas prefere
contratar aos privados: “Meios aéreos de combate a incêndios podem chegar aos
72 este ano. Mais 12 do que nos anos anteriores”. Será por “falta de vocação”,
é o que se costuma ouvir. Contudo, não falta vocação, bem pelo contrário, à
ICAR que, fazendo jus à sua tradição, vai explorando e vigarizando, no caso
presente, o estado: “Lista de utentes aumentada com nomes de mortos. Obra
Diocesana do Porto burla Segurança Social em mais de 3 milhões de euros”; ou
como se gosta mais de dinheiro do que água benta.
A revolução poderá estar ao virar da esquina
As coisas não acontecem por acaso. Haverá
razões, umas mais próximas e palpáveis e outras mais distantes e despercebidas:
a dívida pública aumentou em Fevereiro 3,2 mil milhões de euros, Portugal vai
emitir até 1.250 milhões de euros em bilhetes do tesouro no segundo trimestre
de 2023, a taxa de esforço das famílias com crédito agrava-se para 25,1% do
rendimento, salários estão no pódio de fatores de maior insatisfação
profissional, em 2022 houve mais de 6 mil mortes em excesso e o envelhecimento
não explica tudo, maioria dos portugueses aceita limites no consumo de carne
pelo ambiente (porque não tem dinheiro para a comprar), fundo de pensões da
Segurança Social desvaloriza 13% em 2022, praças e sargentos defendem que nova
falha do 'Mondego' reforça alerta dos 13 militares, número de portugueses sem
médicos de família subiu para 1,6 milhões, Galamba tinha avisado CEO da TAP que
ia ser demitida, mas não por justa causa. Depois admirem-se: “qualquer dia
temos aqui Paris a arder!”
Parece que terá provocado alguns incómodos a
manifestação, realizada no passado Sábado, a reivindicar mais habitação para quem
trabalha e estuda, para as famílias e para os jovens, que em Portugal são os
que mais tarde saem da família por falta de perspectiva de emprego ou de
habitação, levando a diminuição acentuada do índice de fertilidade, o que
significa que Portugal está a tornar-se num país sem futuro e onde os velhos
são mal tratados ou simplesmente abandonados. Clamar por mais habitação terá
atingido o regime político no seu âmago da hipocrisia e da exploração dos sans
coullote… e sem tecto, daí as reacções intempestivas e algumas
aparentemente surpreendentes.
O ministro Carneiro, o da ordem interna, veio
lampeiro afirmar que “ofender agentes das autoridades é ofender o Estado de
Direito”, ou seja, “uma ofensa a todos nós", o “nós” será mais as elites e
o órgão de defesa dos seus negócios que é o governo PS. O ministro é pessoa
assustada que precisa de ter um polícia a proteger-lhe as costas, como se viu
na imagem televisiva. Polícia desta, o povo passa bem sem ela. E viu-se bem na
manifestação que os participantes presentes se dispuseram a libertar as
companheiras identificados coercivamente pela PSP. Com medo de perder
protagonismo no mundo do trabalho e da contestação social, foi lépido: “PCP
demarca-se de confrontos na manifestação de Sábado em Lisboa”.
Criar uma polícia política soft, munida
de meios tecnológicos avançados, a polícia judiciária (PJ), sob o estrito
controlo governamental, não se faz de rogada, avançou com movimento a nível de
alguns países da UE para haver liberdade, e pelo tempo que for necessário, de
acesso ao metadados, contrariando as próprias directivas europeias sobre o
assunto. Como é tão bom ser pide e com pouco trabalho, o director da PSP e o
comandante da GNR de igual modo já tinham perorado no Parlamento sobre o tema: videovigilância
e preservação dos metadados sem limites estabelecidos. Então, será fácil criar
uma base de dados que poderá ser intercambiada com qualquer outro país do mundo
– um big brother global do qual “não devemos ter medo”, como também
referenciou o cívico chefe.
Como salientamos, e por mais do que uma vez, a
oposição não está interessada neste momento na queda do governo de Costa e do
seu staff, independentemente dos resultados das rotineiras sondagens.
Nesta última, o resultado dá um PS e um PSD empatados, 30% das intenções de
voto, caso houvesse agora eleições. Só que o “agora” é fictício e por isso
aquele resultado, se houvesse eleições, seria com certeza outro; a descida do
PS e a subida do Chega (13%, mais 4%), o PSD estagna, servirá mais para criar
uma opinião pública desfavorável ao governo e mais amiga da oposição e, de
preferência, da extrema-direita. A finalidade é normalizar esta extrema-direita
trauliteira e provocadora que terá mais essa função, de provocar e de abrir
caminho, do que propriamente de vir a ser poder; para aqui outras forças se
reservarão, se as coisas correram como projectado pelas elites. O PCP e BE
ficam por baixo, dando a ideia de que a “esquerda”, seja ela qual for, não é
alternativa.
Alguns comentadores e analistas políticos mais
esclarecidos do regime alertam para outro facto, e esse sim bem mais
preocupante, o partido do governo desce, mas o principal partido da oposição
não sobe. Juntando este facto a um outro, o de surgirem manifestações (professores
e mais habitação) não inteiramente controladas, ou não controladas simplesmente,
por sindicalistas colaboracionistas e partidos moderados do establishment,
então, os sinais de alarme passarão a tocar para o governo, polícias e classe
no poder. Pois é, então, como dizia Marx no “18 Brumário”, a velha toupeira
estará a fazer o seu belo trabalho.
https://cronicasdobarbaro.blogspot.com/2023/04/o-socialismo-do-cabaz-da-fome.html
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